Insatiable, da Netflix, é simplesmente errado
- Culturando
- 30 de ago. de 2018
- 5 min de leitura

Quando a maior plataforma de streaming de filmes e séries, a Netflix, anunciou a produção de uma série que contava a história de uma garota que, após perder 30 quilos em 3 meses, voltava para se vingar de todos que tiraram sarro dela, o público foi a loucura. E não num bom sentido. Para os assinantes, contar a história da padronização corporal através de concursos de beleza, da aceitação feminina apenas quando se está magra e bonita, da competição e da vingança não era uma boa mensagem a ser passada para qualquer um que viesse a assisti-la. Eles estavam certos, e a Netflix deveria ter ouvido. Insatiable, que estreou no início de agosto, é errada em tantos níveis, que chega a ser difícil enumerar.

Tendo Debby Ryan como atriz principal, a série tem uma produção, fotografia, trilha sonora e atuações quase impecáveis, e isso não se pode negar. Ryan saiu da Disney para se sobressair, agora, no mundo adulto das produções, mas sua grande estreia pode não ter saído como esperado. A atriz interpreta Patty Bladel, uma adolescente que passou grande parte da vida lidando com o bullying por estar acima do peso. Quando, após um acidente, a jovem perde seu peso extra e volta para a escola com um corpo de modelo, ela decide viver sua vida como uma vencedora, e decide fazer isso através dos famosos concursos de beleza dos Estados Unidos. Com a ajuda de Bob Armstrong, interpretado por Dallas Roberts, um advogado e treinador de concursos, ela vai atrás de seus objetivos. De uma maneira não muito ortodoxa, por assim dizer.
A história, além de previsível, conta com alguns gatilhos destrutivos. Por exemplo, o sofrimento de Patty, chamada pelos colegas de “Fatty Patty”, com seu corpo é claro, e isso vem de pressões externas, dentro e fora de casa. Entretanto, apesar de todos saberem sobre o assunto, nada é feito para amenizar o que acontece com ela. Com isso, a garota passa a acreditar que ser magra a faria uma pessoa melhor, e mais amada. Quando isso acontece, a determinação por aceitação de Patty se torna patológica. Porém, nesse ponto, o que vale destacar é que ela só se torna valorizável e notável a partir do momento que perde peso, e que atinge o padrão de beleza “loira-corpão” contra o qual tanto se luta. Antes, sua presença só era notada em momentos de humilhação.

Qualquer um que tenha passado pelo ensino médio sabe o quanto essa época pode ser cruel na vida de um adolescente. Sobre isso, não há discussão. Mas reforçar todos os estereótipos não ajuda a melhorar a situação. Patty, depois de alcançar o corpo que sempre quis, assume a personalidade de garota má, dominadora e que usa o corpo para conseguir uma vantagem sobre outra garota, que ela considera sua “concorrente”. Sendo assim, a série reforça o conceito de que a beleza é a única coisa que vale em uma mulher, fora sua inteligência, destreza e tudo o que ela carrega dentro de si. Para a série, o que importa são seus atributos estéticos e suas habilidades eróticas.
Outra questão importante durante os 12 episódios da primeira temporada é a competição imposta. Isso se mostrou um problema ainda mais latente com o passar dos 40 minutos de cada um dos episódios, já que Patty não aceita não ser a mais bonita, ou a mais poderosa, ou a melhor candidata para os concursos de beleza. Um grande exemplo dessa competição feminina que a série exemplifica é quando Patty se apaixona por Bob, seu treinador, e decide acabar com o seu casamento de mais de duas décadas com Coralee Armstrong. Além da competição explícita entre ela e praticamente todas as outras personagens femininas apresentadas. Existem poucos momentos durante todo o seriado em que as personagens femininas se apoiam umas nas outras e se ajudam. No mundo de hoje, onde as mulheres precisam cada vez mais umas das outras, a mensagem de que todas são concorrentes não valoriza a luta diária.

Uma das questões abordadas – porcamente, por assim dizer – é o relacionamento abusivo entre Patty e Christian, filho do pastor. O garoto, que já tinha apresentado problemas com drogas e com um relacionamento abusivo, onde ele sequestra uma de suas namoradas, mas sempre teve o apoio dos pais para se safar dessas situações. Com uma grande habilidade de manipulação, ele controla todos ao seu redor, e faz Patty acreditar que suas atitudes ruins são quem ela é, e que ela deveria “abraça-las”, mesmo quando a jovem tenta ser uma pessoa melhor. Com os acontecimentos que se seguem, Patty termina com Christian e ele começa a persegui-la, controlando os lugares onde ela vai, e tentando, inclusive, colocar um rastreador GPS nela. Porém, mais uma vez, nenhuma denúncia é feita, levando a uma conclusão trágica e evitável. De novo, a Netflix não soube lidar com os relacionamentos abusivos, mostrando-os como um beco sem saída.

Por último, mas não menos importante, a questão LGBT na série é abordada, mas também não é um sucesso absoluto. Começando por Nonnie, melhor amiga de Patty, que se descobre lésbica ao longo dos episódios, o estereótipo típico se mantém. Uma moça isolada, com uma única amiga, e que se veste de maneira peculiar consolida a visão de que uma mulher lésbica não pode ser atraente. Isso muda quando ela conhece Dee, sua namorada, uma lésbica linda e empoderada. Mas, não pensem vocês que a questão com a comunidade LGBT se encerra aí. Muito pelo contrário.
Bob Armstrong e se maior inimigo, Bob Barnard, disputaram a vida inteira por tudo. Porém, mais para o fim da primeira temporada, os dois, casados e com filhos, são obrigados a lidarem com sentimentos escondidos que nutriam um pelo outro. Até aí, normal. Considerando que a série se passa na Georgia, no Sul dos Estados Unidos, um local extremamente tradicional e patriarcal, mesmo em 2018 é muito comum que os membros da comunidade não queiram se assumir por medo de retaliação. Entretanto, Armstrong ainda ama sua esposa, e se descobre bissexual, o que é extremamente desencorajado por seu parceiro, que assume que a bissexualidade é uma mentira. Com a cabeça cada vez mais confusa, Armstrong se vê num beco sem saída, muito antes de decidir, com certeza, o que estava acontecendo consigo mesmo. Ele é forçado a se assumir, e forçado a descobrir se é gay ou bissexual em muito pouco tempo.

Para a Netflix, o caminho ainda é longo quando o assunto é representação feminina. Depois do fracasso que foi a segunda temporada de 13 Reasons Why e de alguns sucessos na área, como (Des)Encanto, era de se esperar que a Netflix pudesse, finalmente, estar no caminho da luz neste quesito. Insatiable, que dissemina um discurso machista e opressor, é errada por motivos absurdos, e se torna cada vez mais nauseante a cada episódio. Porém, os méritos também precisam ser dados: apesar de horrível, a história prende, simplesmente para que você saiba qual vai ser o final. Apesar disso, são horas perdidas para um desfecho decepcionante.
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